quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Memórias curtas: Hoje acordei furioso!!!

"Ganhar a dois carrinhos"
Mercado de Bukhara, Uzbekistan
Nov. 2004
Foto: J. Silva Rodrigues

"Hoje acordei furioso!!!"

É desta forma que se exprime um dos grandes escritores de língua francesa da actualidade, Marek Halter, num dos livros que marca um ponto importante no relacionamento entre seres humanos.

E acordei furioso porquê? Porque me deitei zangado. Sim, e zangado porquê e com quê?
Caro Dr. Pedro Mota Soares,

Fiquei zangado com o que ouvi ontem pela enésima vez da parte de mais um dirigente político português, o Dr. Paulo Portas, líder do seu partido.

E porque estou a escrever para si e não para o Dr. Paulo Portas? Porque a si já o vi e já tive a oportunidade de lhe falar, embora brevemente e em situação descontraída, de turismo. O Dr. Paulo Portas é mais um dos casos típicos das figuras públicas: conheço-o muito bem, mas ele não me conhece a mim…

Fala o Dr. Paulo Portas e pela sua voz o CDS-PP do descalabro do país e da desgraça em que este Governo transformou o país. Verdade, mentira ou só meias verdades? Será que outro governo e outro partido ou coligação de partidos teria feito melhor ou diferente? Se calhar sim, mas provavelmente não!

Mas nesta mensagem de hoje, especialmente se for avante a proposta de o CDS-PP chamar à Assembleia da República o Governo para explicar e depois sujeitar a votos o PEC-4, gostaria de chamar a sua atenção, enquanto chefe do grupo parlamentar do CDS-PP para uma questão que tem estado propositadamente ausente dos vossos debates: a questão da Região Autónoma da Madeira! Mas que falta de coragem os deputados da AR têm mostrado nesta matéria!!!

Durante a discussão do OE para 2011 chegou-se a uma situação em determinado dia em que o diferendo entre o PS e o PSD se cifrava em cerca de 400 milhões de Euros. Parecia pouco para justificar o bloqueio de uma posição de compromisso entre os dois partidos, mas simultaneamente parecia muito à luz dos poucos recursos de que o país dispõe.

Entre este "muito" e "pouco" ninguém – e repito: ninguém! – se lembrou que pela mesma ocasião estava a ser passado um cheque de várias centenas de milhões de Euros (quase mil milhões!!!) à Madeira a título de compensação pela catástrofe de Fevereiro de 2010. Basta ver o que ficou escrito na Lei Orgânica n° 2 de 2010. Péssimo exemplo de diploma legislativo, tantos são os erros que nela ficaram cristalizados… Culpa do Governo ou de quem redigiu a lei, mas também de quem a aprovou.

A RAM irá beneficiar de ajudas substanciais provenientes do OE por via desta Lei Orgânica n° 2. Mas não só! Também os fundos comunitários entrarão na composição do bolo!

Mas será tudo tão cristalino assim? Será razoável olhar para um país com lentes diferentes consoante se trate do continente ou das regiões autónomas?

A RAM queixa-se, pela voz do seu Presidente, que tudo vai mal no continente no que respeita a dar o justo à RAM. Mas alguém nas fileiras do CDS-PP, bem como nos restantes partidos com assento parlamentar, tem a honestidade de perguntar se é justo dar o que a RAM pede?
  • Que região do país se pode dar ao luxo de gastar dezenas de milhões de Euros na construção de praias (e já lá vão duas!) com areia dourada numa ilha vulcânica? Se não me engano, trata-se de cerca de 20 milhões de Euros para cada uma dessas praias!
  • Que região do país se pode dar ao luxo de construir um acesso a um centro empresarial, furando um túnel a quase 2 milhões de Euros por metro? No total de 1,7 km pagou-se mais de 32 milhões de Euros!
  • Que região do país se pode permitir subsidiar um bar de bilhares, dardos e jogos de cartas com dezenas e dezenas de Euros vindos directamente do contribuinte?
  • Que região do país se pode dar ao luxo de financiar a criação de uma lavandaria (sector privado!) no valor de mais de 100 mil euros pagando o sector público cerca de 50%?
  • Que região do país tem possibilidade de financiar custos de tesouraria e ajuda no pagamento de dívidas à segurança social de empresas falidas ou sem viabilidade económica, tratando-se aqui de snack bars, cafés, ourivesarias, etc.?
  • Que região do país se pode dar ao luxo de gastar mais de 5 milhões de Euros todos anos em fogo de artifício de fim de ano?
  • Que região do país se pode dar ao luxo de deixar cair no esquecimento uma marina que se anunciava um projecto desastroso e vir agora inclui-la na lista dos projectos a reconstruir supostamente como vítima das intempéries de Fevereiro de 2010?

São questões como estas que me fazem acordar mal disposto, em especial quando sou matraqueado com afirmações moralistas, mas também populistas do líder de um dos principais partidos da oposição coma assento parlamentar.

Caro Dr. Pedro Mota Soares, na sua qualidade de chefe do grupo parlamentar do CDS-PP, eleja para o seu discurso de hoje temas que tragam a verdade ao de cima e não faça apenas repetição das palavras gastas. Traga ao debate aquilo que realmente se passa, nem que isso represente uma bofetada na própria cara.

Se é preciso poupar, não basta referir – como o seu líder repetiu ontem na conferência de imprensa – os grandes projectos TGV e aeroporto. Se pode ser verdade que se trata de recursos gigantescos não é menos verdade que também recursos gigantescos correm o risco de ir parar à RAM de forma inapropriada e por essa forma de irem parar mais uma vez ao oceano.

Será com o maior prazer que lhe darei mais detalhes de tudo isto que me faz acordar furioso.

Um abraço vindo directamente de Bruxelas.
Joaquim


NOTA: Esta mensagem foi enviada no passado dia 14 de Março de 2011 ao então chefe do grupo parlamentar do CDS-PP na Assembleia da República, Dr. Pedro Mota Soares, hoje ministro da segurança social do governo de Pedro Passos Coelho. Eu tinha-o encontrado em Budapeste e, no seguimento da nossa conversa, ele disse-me: "Estou à sua disposição em tudo o que puder ajudar". A esta mensagem nem respondeu... Fica registado para mais tarde voltar a recordar...

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Era uma vez um amigo...

"Aquele abraço"
Quba, Azerbeijão, 2004
J. Silva Rodrigues

Eramos miúdos e tudo corria sobre rodas. Construía-se a amizade entre os bancos da escola e dois pontapés na bola e uns cigarros comprados a 2 por cinco tostões fumados às escondidas. Depois, com alguns anos mais e também mais uns trocos no bolso e uma nota para gasolina, lá se partilhava a amizade no pub (era o Twiggy nessa altura que estava na moda...), regada com moderação com um (e não uns) uísque. A vida corria bem, as conversas eram ligeiras e fáceis, o mundo tinha a sua velocidade e nós tínhamos a nossa.

O casamento veio com a idade e com ele uma nova vida: mulher e filhos, obrigações familiares às quais se juntaram as obrigações profissionais. Sim, pensava-se numa carreira para dar corpo ao que já vinha de trás: da escola, do liceu, da universidade.

Com tudo isto veio a separação: primeiro a geográfica, física e depois (consequência) sentimental. .Longe da vista, longe do coração...

No início achava-se normal que o silêncio se instalasse. No fundo, era um "vou ali e venho já" que nunca poderia durar muito tempo. No fundo, os amigos, mesmo guardando silêncio, ficam sempre amigos, estejam eles onde estiveram.

Só que os anos passaram. Muitos, ou apenas alguns, segundo o prisma por que se olhe.

Uma primeira tentativa de reatar ligação com um dos amigos "perdido" na capital já se tinha saldado por uma enorme decepção. Afinal o amigo já não era! Tinha migrado para outra esfera e a memória da escola, do liceu, do pub e de tudo o mais tinha-se perdido. Ou pelo menos não estava presente quando mais foi necessário.

Um segunda tentativa com outro amigo teve idêntica sorte. Estava muito ocupado... Perdeu-se a paixão, a emoção do reencontro. Por isso também a decepção que seria o remédio contra a nostalgia do passado aconteceu.

Uma terceira foi, se calhar, a derradeira. Nova tentativa de por de pé e nova queda abrupta. Depois do casamento de ambos os amigos, com ligações estreitas e feitas ainda mais estreitas com laços de apadrinhamento, veio a emigração. É, a vida tem destas coisas: um dia, mais cedo ou mais tarde, por esta ou por aquela razão, podemos ter que emigar! Seja lá para onde for... E foi isso mesmo: veio a oportunidade (mais do que a necessidade) de ir para outro lugar. No início era muito longe. Não havia os meios de comunicação e de telecomunicação que hoje existem. Era tudo muito longe, muito distante. E com a distância e com o silêncio tudo era diferente.

Passaram-se os anos. Foi muito tempo, eu sei! Mas apareceu nova tentativa de refazer os laços que, sem se terem desenlaçado, estavam pouco apertados. Já com recurso às novas técnicas de comunicação, as minhas tentativas de reatar terminavam sempre, invariavelmente, com "um grande abraço de amizade". Nem sempre houve correspondência, mas quando houve foi desanimadora: em resposta (será que era em resposta?) ao "grande abraço" vinha apenas "cumprimentos" ou no melhor dos dias ""melhores cumprimentos".

Caro amigo, o que se passou? Então já não me dás um abraço? Mandas-me cumprimentos, como acontece entre desconhecidos ou entre gente de formalidades? Já não és mais meu amigo, pois não? Eu tenho a certeza de que, se eu precisasse de ti enviarias em meu socorro "cumprimentos". Só que eu preciso mesmo é de um "abraço de amizade".

Muitas pessoas costumam dizer: "Eu tenho um amigo meu..." ao que eu costumo responder que há alguma repetição nos termos da frase. Só que a vontade de que os amigos que temos sejam nossos obriga a esta repetição! Nestes casos não se mandam cumprimentos; dá-se um abraço apertado de amizade.

Eu mandei-te alguns abraços. Tu respondeste com cumprimentos. Por isso eu costumo dizer: "Eu tinha um amigo meu..." Agora chamo-te "ex-amigo" porque cumprimentos tenho-os eu de quem eu quiser e sempre que quiser.

Adeus amigo. Gostei muito de te ter conhecido...

terça-feira, 7 de junho de 2011

Pegadas na areia


Pegadas na areia


Certa noite um homem teve um sonho.

Sonhou que estava a caminhar na praia com o Senhor.
Do outro lado do céu, passavam cenas da sua vida.
Para cada cena, ele percebeu dois pares de pegadas na areia:

Um par era dele, e o outro era do Senhor.

Quando a última cena da vida passou diante dele,
Olhou para trás, para as pegadas na areia.
O homem notou então que, muitas vezes,
No caminho da sua vida, havia apenas um par de pegadas.
Notou também que isso aconteceu precisamente nos
Momentos mais tristes da sua vida, o que realmente o entristecia.

Então questionou o Senhor sobre isso:

"Senhor, Tu disseste que, uma vez que eu decidi seguir-te,
Tu andarias sempre comigo.
Mas tenho notado que na maior parte dos
Momentos difíceis da minha vida há apenas um par de pegadas.
Eu não entendo porque é que, quando
Eu mais precisava de Ti, Tu me abandonaste".

O Senhor respondeu:

"Meu filho, meu querido filho,
Eu amo-te e jamais te deixaria.
Durante o teu tempo de provação e de sofrimento,
Quando tu apenas vês um par de pegadas,
Foi nessa altura que eu te levei ao colo. "



Quando vier a Primavera


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


Alberto Caeiro