quarta-feira, 19 de março de 2014


TODO O FILHO É PAI DA MORTE DO SEU PAI
Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai!

É quando o pai envelhece e começa a andar de devagar como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.

É quando aquele pai que segurava com força a nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, noutros tempos firme e intransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair do seu lugar.

É quando aquele pai, que antigamente mandava e dava ordens, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela…

É quando aquele pai, antes falador, comunicativo, bem disposto e trabalhador, fracassa ao tirar a sua própria roupa e não se lembra onde estão os seus remédios.

E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.

Todo filho é pai da morte de seu pai.

Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente a nossa última gravidez. O nosso último ensinamento. Altura para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor recebido.

E assim como mudamos a casa para esperar a chegada dos  nossos bebés, tapando tomadas e colocando proteções, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.

Uma das primeiras transformações acontece na casa-de-banho.

Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no chuveiro.

A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.

Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos dos nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos os nossos braços nas paredes.

A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Os nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.

Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir as escadas mesmo sem degraus.

Seremos estranhos na nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Podemos ser arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como é que fomos capazes de não prever que os pais adoecem e precisariam de nós?

Feliz do filho que é pai do seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.


No leito do hospital abracei ternamente o meu pai e falei-lhe ao ouvido: assim, baixinho, como falei aos meus filhos quando estavam doentes ou quando tentava adormece-los.

Fiquei o tempo que nos apeteceu, a ambos, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.

Embalei o meu pai de um lado para o outro. Devagarinho, porque o meu estava muito doente e mexê-lo com força poderia causar sofrimento.

Acalmei o meu pai.  E acalmei-me a mim.  E apenas dizia, sussurrando:

·         “Estou aqui, estou aqui, pai! Sou o teu filho. Nada de mal te pode acontecer. Descansa! Estou aqui contigo e para ti!”
"Falei agora mesmo com o meu pai pelo telefone que a minha mãe encostou suavemente à sua orelha muito doente. Sei que me ouviu e que retribuiu o beijo que lhe enviei, mas infelizmente não consegui ouvir a voz do meu pai... talvez o telefone ainda não seja ainda muito bom. Mas sei que o meu pai ouviu a minha voz. Como fiquei triste, mas tão feliz!

O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.

20 de Fevereiro de 2014

(Adaptado de um desconhecido)

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